quinta-feira, 25 de junho de 2015

Puto Zé








UM QUASE CONTO POUCO EDIFICANTE:


O ÊXTASE DO ESTAGIÁRIO

O estagiário olha extasiado para o enorme palco atulhado em flores e alta tecnologia. A adrenalina é tanta que apesar de ontem ter passado a noite em claro, não sente o mínimo cansaço.

Não obstante uma boa parte dos diapositivos a apresentar nesta magna conferencia serem da sua autoria, o estagiário teve apenas direito a um modesto lugar na quinta fila. À sua frente sentam-se as estrelas dos vários campos da ciência. Professores, tutores e proeminentes gurus da física quântica, aeroespacial, robótica  e inteligência artificial, vão-se acomodando nas filas da frente,  em cordial confraternização com membros do governo, diretores gerais e carismáticas figuras públicas.

No palco, o gordo Robb e outros estagiários vão arrastando com visível esforço uma enorme gaiola. Lá dentro está uma ave de exótica plumagem, comprido pescoço e exuberante busto. Quem olha para  este pássaro acha-o deselegante, apesar de belo. Para o tamanho, o volumoso buço, as asas demasiadamente pequenas, a fantástica poupa e a imensa cauda, dá-lhe um aspeto francamente desproporcionado.

Toda a gente sabe que um bicho assim, quanto muito consegue voar como uma galinha.

O que esta conferencia pretende demonstrar são os fundamentos científicos da ave do paraíso nunca poder voar como um falcão.

Foi este o repto que o MIT lançou há coisa de um ano atrás à comunidade científica. As principais agências aeroespaciais abraçaram com entusiasmo este desafio e o estagiário, juntamente com outros promissores jovens cérebros, trabalharam que nem cães quase até à exaustão, supervisionados por uma legião de sonantes orientadores científicos.

As estrelas do firmamento científico, apesar de aparecerem muito de vez em quando junto dos estagiários, foram surpreendentemente  ágeis em garantir que os seus nomes figurassem nas primeiras folhas das resmas dos estudos efectuados.

Enfim, a vida é como é, um eminente filósofo disse que slot não é problema e outro, muito menos conhecido e que se dedica à escrita nas horas vagas, acrescentou que a vida não é nada fácil. Assim não é sem admiração que vemos o nosso ansioso estagiário ser remetido para uma discreta quinta fila.

E o trabalho foi imenso e duro nestes quatro últimos meses. Se o passaralho tivesse algum resquício de alma,  também esta teria sido dissecada  com o mesmo rigor, a mesma rígida minúcia e a científica objetividade com que analisaram a paupérrima ergonomia do animal. Gráficos, intermináveis equações, projeções e virtualizações com muitos D's, catapultaram a exótica galinhola para as primeiras capas das revistas da especialidade.  

Agora, o decano da prestigiada universidade prepara-se para agraciar a sobrelotada sala com pérolas do método científico. Perante um batalhão de jornalistas, cientistas, industriais e entediados atores e desportistas, o distinto decano irá iluminar o mundo com as objetivas justificações da desengonçada ave não poder voar. Momentos antes uma irrepreensível orquestra sinfoniou hinos ao triunfo da ciência moderna, para grande prazer de Mozart, Haydn, Beethoven  e  algum público presente no magnífico anfiteatro. A restante malta fez cara de entendido na matéria, ar de profundo apreciador mas ia deitando discretas olhadas aos relógios enquanto calavam bocejos reveladores.

Um tenso burburinho fez-se sentir na plateia  quando o gorducho Robb retirou a gaiola e a desproporcionada ave, agora liberta, se mexeu desengonçadamente no poleiro. Olhou pisca para a assistência, abriu nervosa as curtas asitas, espetou a longa cauda e encheu o protuberante peito como se fosse um pavão.

E piou.

O roufenho som produzido pela ave  foi o anticlímax que provocou algumas gargalhadas no magnífico salão e multiplicou conversas, sussurros e sons de telemóvel.

Todo este ruido provocou um  nítido desconforto na deselegante galinhola que pareceu olhar tão ilustre assistência com um certo acanhamento. Talvez vergonha.  

Um cientista mais imaginativo chegou a jurar que o bicharoco pedia humildemente desculpa pela sua condição de ave rastejante.

Sem dúvida, uma vergonha para a classe das aves.

Incomodada com o barulho, agora liberta da enorme gaiola, talvez esta exótica coisa quisesse voar. Acontece que a condição de galinha gorda e mal feita impediu-a de tamanho intento logo após a segunda tentativa feita com muito pouca convicção.

Por isso o bicharoco aquietou-se no poleiro, abriu longamente o bico como se fosse um bocejo, fechou os olhos  e pareceu dormitar.

E o decano reitor mergulhou numa inspirada locução, resumindo as científicas conclusões de muitos notáveis que se perfilavam nas primeiras filas, rapinadas ao árduo trabalho da legião de brilhantes estagiários.

Na quinta fila, logo atrás de tão ilustres personagens, o estagiário quase rebenta de orgulho aos ver os seus intrincados quadros serem exibidos para tão distinta assistência.

Sem dúvida que este é um momento para ser recordado, suspirado e louvado por muitos anos. Um triunfo para  ser contado junto dos seus netos e, se Deus e os futuros filhos trabalharem com celeridade,  bisnetos.

Os prodigiosos gráficos, equações e projecções,  voam agora  alegremente numa orgia a três dimensões sob a rígida batuta do decano reitor, maravilhando tão eclética assistência.

Faz-se história neste magno salão, que tantas maravilhas cientificas deu a conhecer à humanidade.

E quando o respeitado cientista proferiu as últimas palavras, quando por fim deu como cientificamente provado que era impossível a desengonçada ave voar como um pássaro que se prezasse,  o enorme salão ribombou ao som de sentidos aplausos e vibrantes vivas.

Talvez assustada com tamanha barulheira, a ave acordou, abriu as asitas e elevou-se sobre a assistência num elegante voo.

Deu duas voltas ao enorme recinto e descobrindo uma janela, voou como um falcão em direção ao glorioso céu azul.








Caros Amigos,

Hoje adicionei um excerto sobre o Puto Zé ao site do livro ( www.correiodearc.wix.com/terra  ), 

ao blog (http://terraleve.blogspot.pt/ ) e 

ao facebook  (www.facebook.com/terraleve).  

Facilmente  se pode imaginar este personagem eternamente jovem apesar da sua idade, bastante imaturo e que foge da responsabilidade como o diabo da cruz. 

O Puto Zé é um bacano, altamente curtido e normalmente a estrela das festas em que entra. Para ele a vida é uma curtição permanente  e as relações que vai construindo (e com a mesma velocidade com que as desfaz) são pura diversão para ele. O Puto Zé  passa pela vida com a graciosidade de um bailarino sobre o palco e o seu contagiante humor é um farol que atrai corações solitários. A sua vida não tem amarras nem porto seguro; as paixões, numerosas, tem tanto de intensas como de efémeras. Quanto ao sofrimento, esse é sempre passageiro.

Na busca do Google procurei por bons malandros e fiquei logo com uma mão cheia de candidatos.  Fiquei muito satisfeito com a escolha. Esta cara não engana ninguém; é o Puto Zé sem tirar nem pôr.








A música não é das mais inspiradas que encontrei. Dito de outra forma:  sempre tive um “carinho” especial pelo Billy Joel e “My Life” é uma das minhas preferidas. Por aqui estamos conversados. A música é excepcional mas  continuo a achar que não retrata bem o Puto Zé. Ok, tem alegria e vigor quanto baste mas… como direi… é demasiado “certinha” para o Puto Zé.  Vocês entendem, certo? O homem consegue ser mais alegre, mais “puto” e  muito mais maluco que esta música. Ouçam e vejam o video logo após o texto.

Podem consultar a página do Puto Zé  em:
http://correiodearc.wix.com/terra#!__puto-ze

Escrevo algo que não me canso de repetir: utilizem umas boas colunas ou uns auscultadores. Há imensa música no site e, francamente, o som dos PCs, tablets, etc, é  mau (horrível, mesmo).

Caso gostem deste site e do que estão a ler, divulguem pelos vossos amigos. É a única forma de um desconhecido autor chegar a um público mais vasto. Os endereços são: www.facebook.com/terraleve   ou http://terraleve.blogspot.pt/.
E pronto, amigos.  Em breve estarei aqui para vos falar sobre o Kiese. 




















Capítulo 03
UM ANO PARA O FIM
ANSELMO MUNGUAMBE
LUANDA
Quinta feira, 10/Dez/2015, 10:00

Pelo canto do olho Anselmo vê o olhar de nojo que o Chipenda lhe deita. Pensa na casa a precisar de obras urgentes, nas paredes negras de bolor, no lixo que se vai acumulando um pouco por todo o lado apesar dos esforços da Luena. Fica na dúvida se o nojo do Chipenda é por causa da casa ou de si próprio

José. Mais conhecido por Puto Zé.

Desde o início soube que aquela relação iria ter um final parecido com este. Principalmente quando se deixou apaixonar por ele. Ninguém se deve apaixonar por um homem conhecido por Puto Zé. Um Puto Zé que passa pela vida como uma anedota. Um Puto Zé que é um brinquedo para usar e deitar fora.

Um dia teve a imprudência de amar esse brinquedo. Encontrar-lhe outra finalidade. Um sentido na vida para além do ocasional prazer. Solta uma amarga gargalhada enquanto a água escorre em mil riachos pelo seu negro corpo. Sorri, amargo, pensando na sua sorte.

Da vida viu mais do que queria mas não o suficiente. Senão, como foi possível apaixonar-se por um homem conhecido por Puto? Um dia, recordou com o coração num soluço, um dia sentiu que podia construir algo de permanente com o Puto Zé. É bem certo que não tinha ilusões de construir uma vida a dois. Ter uma vida como o Chipenda e a mulher, por exemplo. Uma vida pública, respeitada, admirada, talvez invejada. A revolução foi só política, pensa. O homossexual continua a ser escorraçado para as sombras, para as franjas. Apenas tolerado enquanto dissimulado e publicamente negado como qualquer aberração. Um marginal da sociedade..

Apesar de tudo, sonhou uma espécie de vida em conjunto.

Dos encontros fortuitos para os lados do Cassenda até à sua casa, ao seu quarto, onde as noites ficaram mais quentes que o sol de verão. Quero ser o teu anjinho de estimação, disse-lhe um dia o Zé, aninhando-se nos seus braços, os corpos transpirados de um sexo delicioso e os corações ainda desenfreados. E assim foi. Todas as noites, todos os dias.

Até que há três meses bateu as asas para um Hans qualquer coisa. O alemão é correspondente num jornal impronunciável e com os bolsos cheios de notas verdes.

Subitamente toma consciência que o brinquedo era ele. O detetive durão. O tipo calejado pela vida, que já viu demais dela. Demais? Solta uma amarga gargalhada. De menos. Quão de menos sabe ele da vida...


Ele, ele é que foi o brinquedo do Puto Zé. Esse homem, eternamente criança, que passa pela vida com uma permanente gargalhada, era afinal o caçador.






quarta-feira, 17 de junho de 2015

Jota









Caros Amigos,






UM QUASE CONTO POUCO EDIFICANTE:



As 50 sombras do Silva


O Silva estava quase a ir ás lágrimas quando soube que o Sombra quer falar com ele. Sou o raio de um simples contabilista e não uma máquina de fazer milagres, resmunga com os seus botões enquanto se prepara para o que aí vem.

-      Silva, meu caro, diga-me só isto: por acaso acha que alguém me vai comprar a padaria se vir esta miséria de números?

O Silva olha desconsolado para o orçamento do próximo ano que preparou com tanta arte. Nalguns casos, para secreta satisfação do Silva, teve a ousadia de ir um pouco além da arte; foi mais artifício.  

Agora só lhe apetece dizer que aquele desastroso verão do ano passado não foi culpa sua. Porém, olhando para a cara furibunda do Sombra, acha prudente ficar calado.

-      Até eu sei que a porcaria destes números tem de estar no verde, com fatinho vestido de ver a Deus, felizes, contentes e a sorrir para o comprador como prostitutas à espera do primeiro cliente da noite! Quero números que transpirem confiança, Silva! Confiança e sucesso! Tire-me esta cambada mal amanhada, depressiva e chorona. Esta coisa cheira mal, Silva! Com números destes, mais vale fechar já a chafarica.

-      Mas eu já cortei onde podia cortar, Sombra...

E é bem verdade o que o Silva diz. Cortou  vinte porcento na farinha o que tornou os papo secos em verdadeiros pães de água.

Também se reduziu na água.

Cortou radicalmente no sal (olhe o coração, Silva! Ainda muitos fregueses nos irão agradecer ter-lhes salvo a vida!).

A etetricidade apanhou um corte de 40% e durante noite a padaria passa a laborar à meia luz (para criar um ambiente intimista, Silva!). 

Os padeiros mais experientes deram de frosques ao anteciparem o desastre anunciado ( veja os putos licenciados que agora metemos, Silva. Foram quase à borla, e um deles até tem uma pós graduação numa treta qualquer!).

Só as gajas do balcão, essas putas, é que deram em fazer greve.

O Sombra nutre um ódio de estimação para com estas loucas alucinadas. A padaria quase a fechar e as gajas vai de fazer greve por tudo e por nada!

Ao Silva parece um milagre a padaria do Sombra conseguir vender um pão que seja quando, mesmo ao lado, as duas padarias low cost florescem vistosas.

-      Se não consegue reduzir os custos, então aumente as receitas. É básico, Silva. Uma coisa básica. Aumente um euro por papo seco e vai ver que os números ficam logo felizes.

-      Mas...

Mais por temor que respeito, o Silva cala o que lhe vai na alma.

Aumentar o preço daquela triste mistela aguada a que o Sombra chama pão?

-      Silva, vamos ver se nos entendemos de uma vez por todas – a pouca paciência do Sombra esfuma-se rapidamente como ténue neblina matinal - eu acho que contratei um contabilista e não uma máquina de fazer problemas.

O Silva acena respeitosamente procurando um buraquinho no chão para se escapulir.


-      Se acha que um euro é muito, aumente qualquer coisa que se veja. Olhe, compense na produção. Aumente a produção mas mantenha os custos que havemos de cortar um pouco mais no farelo. E se isto não chegar, abata uma das máquinas. Está a ver, Silva? Ora aqui está uma boa ideia: vendemos uma máquina e ainda diminuimos os leasings. Mas aumente a produção, caraças! Bolas, Silva, o contabilista é você! Aumente a produção e o preço, caraças!

-      Mas...

-      Silva, Silva! - agora o tom do Sombra é paternalista – não me diga que tenho de lhe explicar tudo, meu caro. Esse maldito papel que está para aí a fazer... ehh... como é que se chama mesmo?

-      Orçamento, Sombra.

-      Isso mesmo. Orçamento. Ora o orçamento que você está a fazer é só para o próximo ano, meu caro.

-      Sim, Sombra.

-      Até lá a gente vende isto, meu amigo. 











Caros Amigos,

Hoje adicionei um excerto sobre o Jota ao site do livro ( www.correiodearc.wix.com/terra  ), ao blog (http://terraleve.blogspot.pt/ ) e ao facebook  (www.facebook.com/terraleve).  

Não há que enganar:  o Jota é um cínico. Homem (bem) vivido, observador por natureza com especial faro para as fraquezas humanas , gosta de ficar longe da acção mas sabe recolher os louros na altura certa. Paira sobre a investigação de Cabinda com uma certa cabritinha de Benguela no pensamento. É assim o Jota: o trabalho complementa (sem estragar) os prazeres que a vida tem para nos oferecer. E se ele pode ficar com o melhor quinhão do bolo, só tem de aproveitar (mesmo que para isso tenha de socorrer de alguns golpes menos heterodoxos) . Sempre vestido a rigor, de paletó, panamá e  flor (geralmente um cravo)  à lapela, passeia a sua bem cuidada figura por qualquer cenário de crime sem nunca se sujar. Olha para o esforçado Anselmo com condescendência e entre baforadas de puros cubanos sabe que no final, a melhor parte ficará para ele.





O rosto, esguio, tem de retratar o “bon vivant”,  mundano e inteligente. Quem olhar para a fotografia deve perceber que o Jota cultiva  ciosamente  uma descontraída sofisticação na aparência. Realmente ele é quase obsessivo nos detalhes e o risco das calças tem de estar perfeito, as camisas sem um único vinco e o paletó sem qualquer poeira. A barba, cuidadosamente mal aparada, dá-lhe o requintado toque dissonante na aparência que cuida com tanto esmero. 

A sonoridade da música do Jota tem de ser sofisticada, complexa e elegante. Tal como o personagem, aliás.  Conhecem por aí algum grupo/cantor que reúna essas características? A mim  veio-me logo à mente o britânico Brian Ferry (a malta mais velha deve conhecê-lo dos Roxy Music. O pessoal jovem que me lê, não perde nada em travar conhecimento  com este grupo que foi  tão inovador na década de setenta). Em 2007, Ferry publica o álbum Dylanesque, talvez aquele onde melhor explora o som “roxiano”. Curiosamente é o único álbum onde este “cantautor” não tem nenhum original seu; todo o álbum (tal como o nome indicia) é feito de covers de canções de Bob Dylan. Achei que a oitava faixa “If not for you” encaixa perfeitamente na complexa personalidade do Jota. Podem ver e ouvir esta música logo após o texto.







Podem consultar a página do Jota em:
http://correiodearc.wix.com/terra#!__jota


Escrevo algo que não me canso de repetir: utilizem umas boas colunas ou uns auscultadores. Há imensa música no site e, francamente, o som dos PCs, tablets, etc, é  mau (horrível, mesmo).

Caso gostem deste site e do que estão a ler, divulguem pelos vossos amigos. É a única forma de um desconhecido autor chegar a um público mais vasto. Os endereços são: www.facebook.com/terraleve   ou http://terraleve.blogspot.pt/.
E pronto, amigos.  Em breve estarei aqui para vos falar sobre o Puto Zé.

















Capítulo 29
UM ANO PARA O FIM
JOHN TRAVIS
CABINDA
Terça feira, 22/Dez/2015, 10:30

A voz calma do Jota coloca alguma ordem na sala. Segura cerimoniosamente no braço do Anselmo e obriga-o a guardar a arma. Olha para o Tiago e remata.

- Deixaste de perceber português ou ficaste surdo? Queremos falar a sós com o Doutor Viriato.

- Estão a cometer um erro, Jota.

- Mano, talvez seja melhor falamos mais tarde sobre os erros de todos nós e depois irmos ao padre mais próximo à procura de absolvição . - vira-se para o Viriato e continua – Doutor, peço que nos acompanhe até à nossa humilde casa...

- Mas... mas… eu posso assinar aqui o depoimento...

Está ofegante, as palavras saem-lhe tensas e aos repelões. O Tiago pensa que não era possível o homem exibir um ar mais culpado.

- O seu colega disse que vinham aqui para assinar... – continua em pânico o Viriato.

- Correto, Doutor. É bem verdade que necessitamos da sua assinatura numa papelada. São os ditames burocráticos que quase nos afogam – olha para a papelada dispersa pela secretária e remata – Julgo que o Senhor Doutor percebe muito bem ao que me refiro.

Compõe o cravo que tem à lapela e continua, exibindo uma expressão semelhante à dos miúdos que são apanhados em falta.

- Acontece que há uns pequenos pormenores que gostaríamos de falar consigo.

Se tal fosse possível, o Viriato ficou mais branco que as paredes do gabinete. Subitamente o ar faltou-lhe e começou a arfar em pânico.

- Mas eu estou inocente. Eu juro que não fiz...

- Calma, Doutor. Calma! Porque está assim tão nervoso? Tem algo a esconder? Não? Então ainda bem para o senhor. É só uma conversinha que queremos ter consigo longe dos seus muitos afazeres.

- Mas eu estou inocente – o Viriato está quase a choramingar.

- Caro Doutor, há cerca de uns vinte anos mandaram-me a Lisboa para uma formação. Digo-lhe uma coisa, caro Doutor, nunca devem enviar um patriota Angolano a Lisboa durante o mês de Fevereiro. Ainda hoje sinto nos ossos o frio que sofri por lá.

Pelo canto do olho o Tiago viu a expressão de contrariedade que passou pelo rosto do Anselmo. Pelos vistos também ele conhece esta longa história. Não tarda nada irá falar do mentor dele, um tipo com a cara em formato de ovo, de bigode e óculos redondos. Dizem que é parecido com o Poirot.

- Disseram-me há tempos esta coisa espantosa: os Dinamarqueses são o povo mais alegre da Europa. São considerados os Brasileiros da Europa ou, se preferir, os Benguelenses de Angola. Consegue acreditar numa coisa destas? Para mim é um dos grandes mistérios da Humanidade. Os tipos vivem meio ano quase às escuras e com temperaturas de fazer gelar a alma e …

Abana a cabeça com incredulidade. Tiago apoia-se na secretária e vê o Anselmo fazer o mesmo. Quando o Jota está lançado no seu tema preferido é capaz de falar durante horas sem parar.

Agora fala do seu mentor, o tal Poirot português.

- Devia ser considerado um herói nacional, sabe? Por aqui o tipo era morto num instante porque não sabe ficar calado. Mas depois erguiam-lhe uma estátua, davam o seu nome a uma avenida, consolavam a viúva e esqueciam o incidente. Nesta terra o tempo tudo lava.

O Viriato estava hipnotizado com este exótico discurso. As extraordinárias palavras do Jota estavam a conseguir o milagre de o acalmar.

- Um filósofo, este Frederico de Souza - faz uma pausa, talvez para recordar a extraordinária personagem - Anselmo, já te contei a frase que o Fred se fartava de repetir sobre a inocência dos suspeitos? Eu diria que é a sagrada Lei da Inocência do Suspeito, segundo o Inspetor Frederico de Souza. Isto se houver alguma coisa sagrada.

Leva as mãos à cabeça num gesto teatral.

- E não é que me esqueci? Doutor, doutor, isto só pode ser da idade – exagerando nos gestos, dirige-se ao Anselmo - Ò Anselmo, ajuda-me lá.

- Até prova em contrário, todos são culpados – responde-lhe o Tiago.


- Isso mesmo. Isso mesmo. Pelos vistos aprendeste alguma comigo, Tiago! – o Jota exibe um largo sorriso – Está a ver, Doutor? Eu até poderia concordar consigo e dizer que o acho inocente. Mas estaria a mentir com todos os dentes que a minha boca tem. Por isso, meu caro, vamos ter uma agradável conversinha na delegacia. Se não se importa, vá com estes cavalheiros – aponta para quatro guardas que estão a barrar a porta. - Entretanto gostava de dar uma palavrinha a este seu empregado.






quinta-feira, 11 de junho de 2015

SEJA PATRIOTA, NÃO VOTE PSD / CDS



Frederico de Souza









Caros Amigos,


UM QUASE CONTO POUCO EDIFICANTE: 

ADMIRÁVEL JORNALISMO NOVO



Quando Lorenzo emergiu das turbulentas águas do Arno, já o corpo da infortunada mulher repousa no chão da Ponte Vecchio, para mórbida admiração de quem por ali passava.

Lorenzo foi o último mergulhador a subir para terra, talvez pelo pequeno busto que segura numa das mãos.

-      Parece mesmo uma das máscaras mortuárias de Varezzi – comenta  o colega Guido, observando longamente o mudo grito de um velho cego esculpido em pedra.

Paolo,  que por  acaso acorrera ao ajuntamento na Ponte Vecchio, tirou em menos de um minuto oito fotografias do Lorenzo, do busto e da infortunada mulher.  Enviou por SMS as oito fotografias ao amigo Riccardo que trabalha no Corriere de La Sera. Escreveu: mergulhadores encontram busto atribuído a Varezzi enquanto resgatavam um corpo do Arno .

Ao mesmo tempo que Riccardo termina em tempo record a notícia da maravilhosa descoberta Florentina, Thomas Boyle, o curador do MET de Nova Yorque solta um palavrão por ser acordado tão cedo.  O excitado Andrew Tyler, o amigo que tem no Post, pede-lhe um comentário urgente sobre o grito do velho cego, a obra prima de Varezzi,  hoje  miraculosamente resgatada das águas do Arno, perto da Ponte Vecchio.

Enquanto a ambulância   transporta  para a morgue do Ospedale di Santa Maria Nuova  o Lorenzo, os colegas e o corpo da infortunada mulher, as redacções dos principais jornais exultam com a maravilhosa descoberta italiana, e as respectivas edições on line estão repletas das fotografias tiradas pelo smartphone do Paolo. Apesar da qualidade digital não ser a melhor, o Photoshop operou milagres e o busto com o grito do velho cego resplandece em tudo o que é jornal.

A notícia da descoberta de uma escultura de Varezzi propagou-se rapidamente como fogo em palha seca, deixando o mundo das artes  e da cultura num imenso delírio onde o êxtase se mistura com o stress imposto pelo timing da notícia.  As edições digitais dos principais jornais não poupam nos elogios à scoperta fantástica e  as notícias valsam doidamente em bytes, chips, motherbords e outras maravilhas da ciência, competindo entre si numa superlativa orgia literária.  

Nas palavras do conservador Guardian, o admirável grito do velho cego viu finalmente a luz, para gaudio de todos nós;

Já o francês Le Monde foi mais parco em palavras, mas ainda assim sublinhou a importância da descoberta, elogiando o grito do velho cego é sem dúvida a obra mais representativa do génio maior  do renascimento,  aquela que melhor resume toda a alma de Varezzi.

O Corriere de la Serra alucinou e numa overdose de alegria patriótica escreveu que  último fôlego de Varezzi,o grito do velho cego, uma dádiva do eterno Arno para a humanidade, 

O alemão Die Zeit é menos eloquente e limita-se a  aclamar  o genial trabalho de Varezzi incorporando toda a dor do mundo no silencioso grito do velho cego.

O Lorenzo ajudou os funcionários a colocar o corpo da pobre mulher numa fria bancada da morgue. Está longe de imaginar que neste preciso momento trava-se uma renhida  batalha entre o nova iorquino MET,  o inglês VA e o recém aberto Louvre em Abu Dhabi;  todos querem ser os primeiros a exibir o que um crítico de arte há minutos apelidou de a oitava maravilha do mundo, a par da estátua de  Zeus, do Colosso de Rodes ou da pirâmide de Quéops.  

Quando Lorenzo chega à sala de descanso do pessoal começa a retirar o busto que resgatou das águas do Arno.

Todos os seus colegas olham atentamente para a televisão.

O Ministro da Cultura reluz no pequeno ecrã. Está  ladeado pela mais fina intelligentsia cultural italiana, enquanto explica ao mundo a importância deste achado.  O Ministro transborda de orgulho pela a recente descoberta, pelo  Varezzi, pela  Itália e, principalmente, por si próprio.  

Logo o ecrã se encheu com uma das fotografias tiradas no smartphone do Paolo, agora cuidadosamente retocada em fotoshop.

-   A tua estatueta é mesmo parecida à da televisão – diz um colega a olhar para o busto do Lorenzo.

-   Quem me dera – ri-se o Lorenzo – esta aqui tem uma inscrição dentro da boca do velho.

Curiosos, os colegas olham para a boca do velho cego.

Dentro da cavidade bucal está efectivamente uma pequena etiqueta com um código de barras:

Made in China.










Hoje adicionei um excerto sobre o Inspector Frederico de Souza ao site do livro ( www.correiodearc.wix.com/terra  ),

 ao blog (http://terraleve.blogspot.pt/

e ao facebook  (www.facebook.com/terraleve). 

Conhecemos o Inspector  Frederico, Fred para os amigos,  no meu anterior livro, “Uma questão de Bonecas”.  

Apesar dos complicados problemas na coluna que lhe causam dores permanentes e condicionam o andar, o brilho no olhar e um sorriso muitas vezes satírico, traduzem uma inteligência viva, perspicaz e muito criativa. 

Neste livro encontramo-lo reformado da Polícia Judiciária mas ainda muito ligado aos anteriores casos,  principalmente a um atentado ocorrido em Sevilha. A sua intervenção no caso Sevilhano  foi marginal; colaborou apenas com a polícia Espanhola. No entanto  não consegue conviver com o falhanço deste caso e continua a investigar obsessivamente o horrível crime. 

Quem conhece o Fred sabe que é um lutador. Um sobrevivente, como por vezes costuma dizer. Foi-me  fácil imaginar a solitária missão que se impôs, a dedicação que colocou e as dificuldades  que teve de superar. Contrariamente ao descrito no meu livro anterior, encontramos o Inspector Frederico depressivo com este caso que teima em ser mais forte que ele. Com o decorrer da acção, para desespero da Clara, a sua mulher, o Inspector  vai-se fechando cada vez mais sobre si. A demanda , cada vez mais obsessiva, cada vez mais solitária e irracional, traduz a  dimensão da derrota que o Inspector não consegue assimilar.


Bem sei que devia ter pedido uma fotografia ao Inspector Frederico.  A verdade é que arriscava-me a ouvir uma nega se lhe pedisse … Daí resolvi colocar simplesmente uma fotografia que lhe tirei.  Fred, por esta passa, ok?


Quanto à música que o retrata foi das coisas mais fáceis. Bastou um telefonema. “Fred, qual é a música que achas que te retrata melhor?”.  Ele escolheu e eu aplaudi. Solsbury Hill, do primeiro álbum a solo de Peter Gabriel.  Sem dúvida, uma excelente escolha. Vejam o video de Solsbury Hill logo a seguir a este texto.

Podem consultar a página do Inspetor  Frederico  em:
http://correiodearc.wix.com/terra#!__fred

Escrevo algo que não me canso de repetir: utilizem umas boas colunas ou uns auscultadores. Há imensa música no site e, francamente, o som dos PCs, tablets, etc, é  mau (horrível, mesmo).

Caso gostem deste site e do que estão a ler, divulguem pelos vossos amigos. É a única forma de um desconhecido autor chegar a um público mais vasto. Os endereços são: www.facebook.com/terraleve   ou http://terraleve.blogspot.pt/.
E pronto, amigos.  Em breve estarei aqui para vos falar sobre o Jota. 




















Capítulo 20
UM ANO PARA O FIM
FREDERICO DE SOUZA
LISBOA
Domingo, 20/Dez/2015, 16:00


Sente todas as vértebras da sua martirizada coluna a protestar quando se levanta da cadeira. Vai até ao balcão pedir dois cafés ao António só para andar um pouco. A dor está espalhada por todo o corpo e esta mudança de tempo tem sido um rude golpe para os seus ossos. É sempre assim, pensa conformado. Há dias que mais parece uma estação meteorológica ambulante. Geralmente é o primeiro a saber quando o tempo muda. Os ossos encarregam-se de lhe dizer.

Olha para o Pedro, esquecido nas suas recordações à frente do tabuleiro de xadrez. Não se permite ter pena do tipo. A incessante busca da verdade que tantos dissabores lhe tem dado, é um vício que há muito deixou de contrariar. 

Não pode culpar a mulher pela falta de paciência que tem. Ainda hoje pela manhã ouviu das boas. Nem na reforma descansas, tinha-lhe atirado quando o viu imerso em recortes de jornais e memorandos do atentado em Sevilha.

Tem uma parede do escritório forrada com a papelada de Sevilha. Já perdeu a conta às zangas domésticas que este mural tem causado. A Clara nem pode ver a parede forrada de rascunhos de jornais, memorandos rabiscados apressadamente e marcas de caneta vermelha.

Tacitamente ela não entra no quarto do vício e quando por acaso o faz, sai de lá com os nervos em franja. Ouviu a porta bater com um pouco de força a mais quando saiu para o aeroporto. A cadela, farejando o stress no ar desatou a ganir, inquieta. 

É o maldito vício, pensa uma vez mais. O seu vício. Simplesmente não consegue parar e desligar-se do assunto.


Capítulo 30
UM ANO PARA O FIM
FREDERICO DE SOUZA
LISBOA
Terça feira, 22/Dez/2015, 14:30

Só de ver a imensa atividade da Clara entre tachos e muitas panelas ficou cansado. Senta-se no sofá da sala, pensa num copo de Jameson com duas pedrinhas de gelo, olha para a mulher e suspira abandonando a ideia do copo, do gelo e principalmente do whisky. Sabe que vai ser assim durante os próximos dias e no final, apesar de imensamente feliz pela companhia dos filhos e netos, irá sentir o protesto de cada maldito parafuso que tem na coluna.

Prudente, evita a cozinha mais a sua frenética ocupante e resiste à tentação de meter-se no escritório e perder-se no mural forrado com os recortes de jornais, fotografias e notas do atentado em Sevilha.

Dirige-se para a janela e faz uma distraída festa na cabeça da impaciente cadela. Hoje vai ser difícil levá-la a passear, pensa olhando para uma espessa cortina de água que não pára de cair, ocultando a maravilhosa vista para a baía de Cascais. Maldiz interiormente esta invernia que nem lhe permite pegar na bicicleta e ir por aí saboreando a vida e algumas obras primas que normalmente costumam passear no paredão. Com um suspiro afunda-se no sofá, tentando não olhar de novo para as garrafas de whisky que embelezam o móvel à sua frente.

Ultimamente acontece-lhe perder a noção do tempo quando mergulha no informático mundo do facebook. Cansado de estar dobrado sobre o computador, espreguiça-se como um gato, alongando o mais que pode toda a região lombar. Olha para a janela e vê que a chuva transformou-se num incerto pingar e o sol, perfurando as grossas nuvens, ilumina aqui e ali a baía de Cascais.

Adivinhando o pensamento, a cadela aparece à sua frente com a cauda a bater que nem um catavento louco. Coloca a bola do passeio perto dos seus pés num claro convite à brincadeira.

Toca o telemóvel.

- Frederico Souza...

Só há uma pessoa que teima em chamá-lo por Frederico mas a voz que lhe surge stressada não é a do Miguel.

- Interrompo? Desculpe telefonar-lhe assim...


Finalmente identifica esta voz que lhe chega com tantos sinais de nervosismo.














quinta-feira, 4 de junho de 2015

Teresa Belo











UM QUASE CONTO POUCO EDIFICANTE:

A PROPOSTA OBSCENA



O Sr. Ermelindo acha-se um perfeccionista, sempre atento aos pequenos detalhes ou às letrinhas miudinhas onde quer que elas apareçam. 

Já os amigos acham-no uma encomenda das antigas, um chato de primeira, um insuportável picuinhas.

Cada cêntimo que o Sr. Ermelindo gasta  é ponderado até à exaustão. A compra do carro que o acompanha quase há trinta e cinco anos é um bom exemplo; levou mais de um ano a escolher o modelo e o vendedor capitulou após dois meses e meio de intenso  regateio onde preço, acessórios e outras benesses eram analisadas, comparadas e discutidas até à exaustão.

Também a oficina que merece a sua confiança surgiu após delicada análise de mercado e muita melguice que os pobres companheiros de almoço tiveram de aturar. Aliás, não é de estranhar que o Sr. Ermelindo almoce muitas vezes sozinho; reuniões de última hora afugentam os colegas para longe de tão chata criatura.  

Hoje, noite cerrada, vemos o Sr. Ermelindo entrar no velho carro  com a mais pura expressão de incredulidade estampada no austero rosto. Simplesmente não consegue abarcar a enormidade que está prestes a cometer. 

Mas a verdade é que não consegue resistir à curiosidade de tamanha obscenidade que lhe propuseram.

Por isso, sentindo-se num pesadelo, está prestes a ligar o motor.


O sonho mau  começou ontem quando telefonou à oficina para marcar a revisão do velho automóvel.

-      Se me permite a sugestão, Senhor Ermelindo...

O Sr. Ermelindo  adora sugestões, principalmente aquelas que lhe permitem poupar uns tostões. Por isso aguçou o ouvido enquanto refazia mentalmente  contas ao que ia gastar na revisão do carro. 

De tostão em tostão se vai ao milhão
é uma das sentenças mais ouvidas da ríspida boca do Sr. Ermelindo.  Com a dica do moço da oficina,  o porquinho de cerâmica que tem ao lado da velha televisão de toda uma vida irá certamente  engordar umas moeditas. 

Pois, é, pois é, de tostão em tostão se vai ao milhão...

-                  Nós abrimos uma segunda oficina, Senhor Ermelindo. Se quer a minha opinião, aconselho-o vivamente a levar até lá o seu automóvel.

O que o Sr. Ermelindo ouviu foi mais ou menos isto:

Leva  lá o automóvel que ficas bem servido  e ainda poupas uns cobres.

De tostão em tostão se vai ao milhão
...

-                  Fica a Miguel Bombarda número...

Espanta-se o metódico  Sr. Ermelindo que se gaba conhecer Lisboa como a palma da sua mão direita. 

Simplesmente não existe nenhuma oficina de automóveis na Miguel Bombarda.

-                  Na Miguel Bombarda?

Algo não encaixa no mundo muitíssimo arrumado do Sr. Ermelindo.

-                   Na Miguel Bombarda, mas de Coimbra, Senhor Ermelindo.

Por momentos o Sr. Ermelindo pensou não estar a ouvir bem. 

Aquilo soou-lhe a coisa sacrílega e mentalmente fez o sinal da cruz para espantar algum demónio que por ali andasse.

-                  Mas... Em Coimbra? Está a sugerir que faça  cerca de duzentos quilómetros para levar o meu carro à revisão?

-                  Mais exatamente duzentos e trinta quilómetros até à nossa oficina, Senhor Ermelindo.  Mas já viu o prazer que é viajar até Coimbra?

Em boa verdade o Sr. Ermelindo estava perfeitamente marimbando no prazer da viagem.  Seja para Coimbra ou para outro lado qualquer. Aliás, no somítico mundo do Sr. Ermelindo, viajar assume contornos de pecado. Ainda quando é à boleia...

Perante tamanha enormidade  pensou,  horrorizado,  na gasolina, no desgaste das peças  e nas malditas  portagens que teria de pagar até chegar a Coimbra para pôr o carro na revisão.

Tem de  haver uma explicação lógica para tamanho absurdo, pensa incrédulo o Sr.Ermelindo enquanto agarra com demasiada força o telemóvel.

-                  Quer dizer... lá em Coimbra a revisão fica  bastante mais barata que em Lisboa. É isso? 

O mundo do Sr. Ermelindo ficou de pernas para o ar com tamanho disparate e o pobre homem tenta a todo o custo restaurar a ordem no seu cantinho.

-                  Nem por isso, Senhor Ermelindo. Nem por isso.

Mistério!

Então porque raio  estão a sugerir que leve o carro até  Coimbra se eles têm uma oficina aqui em Lisboa?

-                Bem… os técnicos lá de Coimbra são melhores? É isso?

Um pouco de lógica nesta história, por favor!

-                Olhe, Sr, Ermelindo, se quer que seja sincero consigo… nem por isso. Aliás, de vez em quando até enviamos uns técnicos aqui de Lisboa para formar essa maltosa lá de cima.

-               Mas então…

-               Já agora, Sr. Ermelindo, uma vez que o senhor é um bom cliente da casa, permita-me  recomendar a pensão “ O descanso do Lisboeta”. Conseguimos para os nossos clientes  tarifas muito competi…

Isto foi a cereja no topo da sensatez do Sr. Ermelindo. 

Estas propostas soam obscenas ao somítico ouvido do homem e a história do hotel foi a gota de água que escorregou pela sua já gasta paciência.  

-              Por amor de Deus! Mas para que quero ficar uma noite em Coimbra?

-              Bem… o Senhor é que sabe mas… o pessoal lá de Coimbra é um pouco lerdo, não sei se me faço entender. Isto de cumprir prazos não é com essa gente, meu amigo. Apesar de todas as garantias que possa ouvir deles, desconfie dessa malta. Sabendo disto,  um homem prevenido vale por dois, não é verdade Senhor Ermelindo?


Agora, ainda o sol não nasceu  e o Sr. Ermelindo roda a chave do carro enquanto, ainda aparvalhado,  murmura: eu não estou a fazer isto. Eu não estou a fazer isto.


E segue em direção a Coimbra para fazer a revisão do velho carocha.








Hoje adicionei  ao site do livro um excerto sobre a Teresa Belo ( www.correiodearc.wix.com/terra  ), ao blog (http://terraleve.blogspot.pt/ ) e ao facebook  (www.facebook.com/terraleve).  

Se a Teresa chegasse a conhecer o John Travis, desconfio que não iria morrer de amores por ele  : enquanto ele é violento, rústico, uma montanha de músculos e de poucas palavras, ela é  bonita, delicada e alegre. Já quanto ao inverso, tenho as minhas dúvidas. No entanto ambos tem uma coisa em comum:  souberam lutar por um lugar de destaque neste livro. 

Tal como o John, a Teresa devia aparecer na trama apenas de forma marginal. A função dela  limitava-se a ser o elo comum entre  vários acontecimentos (aparentemente desconexos). Em boa verdade, a Teresa Belo  não apareceu no primeiro esboço que imaginei. Foi a tal  necessidade de ligar algumas histórias que justificou a personagem Teresa Belo. Mesmo assim, como disse,  devia ser uma figura marginal, ficar na sombra de trama. 

Ora a Teresa Belo não esteve pelos ajustes e rapidamente soube transformar-se num personagem central (e obrigar-me a reescrever parte da trama).Não contente com esta façanha, ao longo da escrita a Teresa  teve a arte de se ir transformando num dos meus personagens preferidos. Ri-me com a Teresa e com ela senti algumas vezes os olhos marejados. Estou certo que pelo menos alguns de vós também sentirão algo parecido ao longo da história. Ao colocar o ponto final no livro, foi da Teresa e da Annie que senti mais saudades…


Também a Teresa tem alguém real que me serviu de modelo quanto aos traços de personalidade. Como compreendem, atendendo à personagem Teresa Belo, não divulgo o seu nome. Basta-me que ela saiba que estou muito agradecido por poder utilizar as suas principais características. A par da enorme beleza, a transbordante alegria, positivismo e confiança na vida , tornaram a personagem Teresa numa das minhas preferidas. Para esta minha amiga, para além de um imenso obrigado, fica uma certeza: amanhã tenho todo o gosto em oferecer-lhe um café com um pouco de canela. 

A Teresa é linda. É sem dúvida a mulher mais bonita do livro. Nela tudo é perfeito: um corpo fantástico, uma cara delicada, uns olhos maravilhosos e um sorriso deslumbrante. Os homens (e algumas mulheres) derretem-se perante tamanha beleza e pensam… enfim, vocês sabem o que eles pensam e o que gostariam de fazer com ela.

A escolha deste rosto não foi tarefa nada fácil. No final fiquei algo decepcionado; tamanha beleza grita por um outro rosto. 







A Teresa é uma prostituta de luxo que sabe retirar o que a vida (e principalmente o dinheiro)  tem de bom para lhe dar. Então a música que procurei  para ela devia reflectir este glamour.   Tinha de ser uma música que combinasse a sofisticação com a elegância.  Vem-me à memória Hiltons, Starwoods e outros hotéis de luxo por esse mundo fora, camas de cetim, champanhe francês e gloriosos fins de tarde nos grands boulevards ou na quinta avenida. 

“La vie en rose”, claro está. 

A sofisticação é dada pela Grace Jones. 

Acham bem?  





Podem consultar a página da Teresa Belo  em: http://correiodearc.wix.com/terra#!__teresa  

Escrevo algo que não me canso de sublinhar: utilizem umas boas colunas ou uns auscultadores. Há imensa música no site e, francamente, o som dos PCs, tablets, etc, é  mau (horrível, mesmo).

Caso gostem deste site e do que estão a ler, divulguem pelos vossos amigos. É a única forma de um desconhecido autor chegar a um público mais vasto. Os endereços são: www.facebook.com/terraleve   ou http://terraleve.blogspot.pt/.







Não resisto e partilho convosco parte do bonito email escrito pela  pessoa que me baseei para construir a personagem Teresa Belo:

“  Sinto-me (apesar da profissão da criatura :P) muito lisonjeada por duas razões: a primeira, porque me dá uma enorme alegria ter inspirado uma personagem que será, pelo que me diz, muito querida aos leitores; a segunda porque,  apesar de exagerados, teceu grandes elogios a esta sua amiga!

Contudo, acredite que os elogios que mais me fizeram sorrir com algum orgulho em mim própria, foram as referencias à minha alegria e positivismo.

Gosto de cultivar essas qualidades, dá-me um prazer imenso poder alegrar os dias das minha família e amigos, tentando também fazer com que todos vejam o mundo um pouco mais “cor-de-rosa”. Tanto que, não podia ter acertado mais na escolha do tema; “la vie en rose” é perfeito para mim! ;)

Sei que, por vezes posso tocar na ingenuidade e até nalguma infantilidade, mas sei que sou muito mais feliz assim e espero ir contagiando os que me rodeiam com esta minha maneira de ser."

Eu acrescento apenas que me sinto muito feliz em tê-la como minha amiga.  








E pronto, amigos.  Em breve estarei aqui para vos falar sobre o meu grande amigo, o Inspetor Frederico de Souza.
















Capítulo 15
UM ANO PARA O FIM
TERESA BELO
LISBOA
Sexta feira, 18/Dez/2015, 21:00

Afasta cuidadosamente uma lágrima rebelde e sorri. Era só o que faltava estragar a ligeira sombra que acabou de aplicar com tanto esmero. Olha para o relógio e tenta calar a ansiedade que a visita aos amigos do Nuno lhe está a causar. A triste verdade é que está atrasada e não quer pensar como irá encontrar o Nuno. Nota-o nervoso, impaciente. 

Foi desde que aquele amigo os convidou para jantar. 

Não devia ter confirmado a suposição do bom gigante. Foi um impulso súbito. Depois, como acontece com a maioria dos impulsos, arrependeu-se logo. Mas tinha sido bom. Bom? Foi maravilhoso ter passado pela mulher do Nuno durante aqueles minutos. Encarnar o que nunca teve e sempre sonhou. Na sua vida as coisas boas normalmente passam depressa e agora o Nuno anda todo nervoso. 

Não é para menos, pensa. O homem é gay, vai visitar os amigos e tem de fingir o tempo todo.

Seca cuidadosamente outra lágrima enquanto pensa no teatro que o Nuno terá de fazer. Era tão bom não haver nenhum teatro e entrar naquela casa como sua companheira! Com este jantar sente que abriu uma brecha neste homem tão maravilhoso e ao mesmo tempo tão impenetrável. 

Impaciente, procura um fio que lhe realce o colo. Já é o quarto que experimenta e este será rejeitado como os anteriores. Olha uma vez mais para o relógio e lamenta de imediato  tal gesto. A verdade é que não está a preparar-se para um jantar. É mais do que isso, é um enorme desafio, este. É como se fosse uma guerra, sem tiros nem mortos, mas ainda assim, uma guerra.

Nem sabe porque se empenha tanto.

Pára de mentir para ti própria, recrimina-se. A verdade é que sabe muito bem porque se está a comportar como uma colegial.

Nuno.

Só tem pensado nele, anseia pela sua companhia, sente-se bem junto dele, segura e compreendida. Todo este turbilhão de sentimentos por um gay!

Retira outro colar ao mesmo tempo que pensa no absurdo de estar apaixonada por um gay. Já encontrou homens muito mais bonitos que o Nuno, mais alegres e, sim, porque não dizê-lo, com muito mais dinheiro que este pianista de bares. O que terá este homem eternamente despenteado, com a barba por fazer e demasiado magro para as amarrotadas roupas que veste? 

Apesar da sua profissão, já esteve com alguns homens que a satisfizeram na cama como nunca imaginou. Mas nunca encontrou nenhum que a preenchesse tanto como este maldito homossexual. E nunca o Nuno lhe tocou com um dedo! Oxalá, pensa enquanto seca cuidadosamente uma lágrima mais rebelde, me tocasse com todos os dedos e em todos os recantos...

Agora são várias as lágrimas que lhe escorrem pela face, olha uma vez mais para o relógio e decide esquecer o fio e a sombra que aplicou. Vai simples, sem artifícios que lhe realcem a beleza. Também, para quê? A única pessoa que quer impressionar é inacessível.

Nuno.

Esse querido homossexual de quem apenas sabe que toca maravilhosamente piano e joga xadrez no café da esquina. Não lhe conhece namorado, família nem emprego de jeito. O passado dele é uma tela em branco. Há uma muralha que o rodeia e que resiste ás suas perguntas. Quão empenhada tem estado em abrir uma brecha nesta fantástica barreira. Nos seus sonhos mais íntimos diz-lhe que o ama e fantasia uma vida idílica a três: ela, o Nuno e uma cabana.

Hoje, quando acordou, e recordou-se por breves instantes da corrida junto à praia. Um cão brincalhão metia-se  pelo meio fazendo-a cair. Estavam extenuados mas felizes. O Nuno deixa-se cair e volta-se para ela, abraça-a e beija-a como não houvesse amanhã. 

Ri-se desse adolescente sonho que acabara de ter. É um riso triste este, mas mesmo assim, recordando o sonho, sente o seu corpo incendiar-se com o tal fogo que não se vê mas queima como o diabo.

Sim, não há que negar o enorme desejo que sente por este homem. Tal fogo entranha-se pele adentro, enlouquece-lhe o sexo e comanda a vontade. Interfere, hó se interfere, no seu trabalho. Na cama, com os clientes, não consegue desligar-se da imagem do seu improvável amor. Até já fantasiou estar com ele enquanto outras mãos, frenéticas e exigentes trabalham o seu corpo. Por mais que fantasiasse com o Nuno, sentia-se distraída e, pior, algo embaraçada. Já não foram nem um nem dois clientes que notaram tal alheamento. Receia inclusive ter perdido um dos mais regulares. Aconteceu com ela o pesadelo de qualquer prostituta que se prese. O tipo perdeu a erecção. A culpa, sabe bem, é deste alheamento que a tem assolado.

Bendito alheamento, pensa, enquanto procura uma malinha preta sem alças. Pela primeira vez na vida sente-se apaixonada. Entrega-se a este sentimento como uma adolescente. Sente-se ansiosa e insegura. Perdeu o norte na voracidade dos sentimentos e, como na canção, só pensa nele, a todo o momento.

A campainha toca, é o Nuno. Sente um fogo selvagem incendiar o corpo ao ver o ar apreciativo que lhe deitou.


- Bolas, Teresa, estás simplesmente deslumbrante! 

Sente a sinceridade nas palavras dele e cora como a colegial que nunca foi.