quinta-feira, 2 de julho de 2015

Kiese











UM QUASE CONTO POUCO EDIFICANTE:

O RAMADÃO NO QUARTEL DA EPAM


O presente.

Que não reste qualquer dúvida; o recruta estava mesmo a passar um mau bocado às mãos do sargento Feliciano.

De mãos nos quadris, o rosto a milímetros do pobre recruta, o sargento vocifera que isto não é propriamente uma democracia nem ( neste ponto o azedume do sargento subiu a níveis impossíveis) uma reunião de intelectuais larilas.

Acontece que o recruta, certamente por evidente estupidez, teve a ousadia de questionar um regulamento do quartel.

Este insólito acontecimento chegou aos ouvidos do sargento Feliciano e há quem jure a pés juntos que o homem esteve a milímetros de ter uma apoplexia, tão vermelho se pôs.

A piorar as coisas para os lados do infeliz recruta, sabe-se que o puto tem uma licenciatura em humanistas, finalizada com muita dedicação e sensibilidade há coisa de meio ano. 

Aos olhos do sargento, a licenciatura do recruta coloca-o na perigosa categoria de intelectual. Tratando-se de humanistas, transforma o pobre rapaz em intelectual mariconso.

Para o sargento Feliciano, pior só um licenciado em belas artes. De qualquer forma um tipo ser  licenciado em humanistas já é bastante mau e ele está firmemente empenhado em acabar com qualquer paneleiragem no quartel da EPAM.

Agora o sargento Feliciano prepara-se para acabar a longa acusação e desata a gritar numa fúria justiceira para com o aterrorizado recruta.

Segundo o irascível sargento, o puto é culpado por desobedecer ás normas.

É também culpado por incentivar ao livre pensamento, algo que repugna profundamente o Sargento Feliciano.

Por fim, este perigoso anarquista claramente homossexual, é culpado por não honrar nem o quartel nem a farda que veste.

A verdade é que esta história tem muitos culpados. Para mim, talvez o mais culpado de todos tenha sido um pombo.

Mas para compreendermos melhor a culpa do pombo, temos de recuar 5 anos.



5 anos atrás.

Quis o destino que um pombo se aliviasse em pleno voo e a prendinha acertasse com precisão cirúrgica nos calções do menino Manel Maria. A D. Matilde a olhar desconsolada para os calções do miudo,  maldisse amargamente  a sua sorte, rogou uma sonora praga ao pombo e disse ao filho para se sentar no único banco que está à frente da entrada do  quartel da EPAM.

Diz-se que os soldados não se chocam com pouco e talvez seja verdade. Mas os quatro praças que entravam no quartel ficaram no mínimo chocados ao ouvir os impropérios proferidos pela D. Matilde, a boazona esposa do comandante. 

Digamos que há alguns atenuantes para o veemente desabafo da mulher; ao fim e ao cabo, para além da cagadela do pombo,  quando o menino Manel Maria se levantou do banco tinha os calções e as costas da camisa pintados de verde escuro. 

O mesmo verde escuro que alguém ainda há menos de duas horas pintara o banco em frente do quartel da EPAM.

O comandante do quartel também maldisse amargamente a sua sorte. 

Digamos que o incidente com os calções e a camisa do filho foi a situação mais delicada que teve de lidar durante toda a sua estadia no quartel da EPAM. Enquanto ouvia das boas da D. Matilde, praguejou silenciosamente. Logo isto lhe tinha de acontecer na véspera de se transferir para a Terceira!

Como é possível, trovejava a boazona da D. Matilde, que nenhum soldado estivesse de guarda ao banco pintado de fresco? 

Quantas mais pessoas se sentarão nele e ficarão com as roupas irremediavelmente estragadas com a tinta verde escura?

Foi debaixo de muitas observações causticas da D. Matilde que o Comandante rabiscou apressadamente o infame regulamento que rapidamente se tornou conhecido como o Ramadão do quartel da EPAM.

Reza assim:

Que antes nascer do sol e até meia hora após o pôr do sol, um soldado deve ficar de vigilância ao banco situado na entrada do quartel, no passeio da Av. Linhas de Torres, impedindo que qualquer pessoa se sente nele.

Na pressa, o bom do Comandante nem se lembrou que a tinta agora fresca,  certamente amanhã estaria seca.

No dia seguinte, enquanto o Comandante recebia as felicitações pelo excelente trabalho desempenhado no quartel da EPAM, enquanto uns estafados praças atamancavam os seus pertences numa velha carrinha militar com destino à Terceira, o sargento Feliciano lia pela primeira vez esta ordem regulamentar com evidente prazer.

O infeliz recruta que apanhou com a regra do Ramadão tinha acabado de se licenciar em belas artes. 

Diga-se que o acaso não teve nada a ver com a escolha do Sargento Feliciano.


5 anos volvidos: o presente.

O recruta dormiu mal esta noite. Não sabe muito bem o motivo porque o sargento teima em escolhê-lo para o ramadão. Por isso, ontem ao jantar surripiou umas salsichas, juntou-lhe um naco de queijo estranhamente duro e uma triste folha de alface. Entalou a parca refeição num papo seco que já viu melhores dias e rezou para que a sua intuição estivesse errada.

Ao longo da sua curta vida, o recruta já se enganou demasiadas vezes para o seu bem. Infelizmente desta vez a intuição do pobre moço revelou-se correta.

Uma hora antes do toque da alvorada, o sargento Feliciano entra pela camarata e berra a regra do Ramadão como faz diligentemente todas as manhãs ao longo dos últimos 5 anos.

Olha compenetrado para os recrutas e após um breve período de reflexão, o ríspido rosto do sargento enxuvalha-se num feio sorriso; tinha acabado de se decidir uma vez mais pelo mariconso que se licenciou em humanistas.

Ontem, talvez por desespero, o recruta foi arrojado e, num momento de loucura, contrariando o regulamento, sentou-se no maldito banco que está à frente do quartel.

Já andava a matutar nisto há coisa de um mês e tinha chegado à conclusão que a melhor altura para esta destemida ação era durante almoço.

Talvez pensando que o maldito banco tivesse poderes sobrenaturais, o recruta sentou-se muito levemente na pontinha do banco, enquanto agarrava nervosamente a espingarda.

Nada aconteceu.

Depois refastelou-se em cima do banco.

Também nada.

Ganhando confiança, pousou a espingarda no chão  e pôs-se aos saltos em cima do banco.

Nenhuma explosão. Nem o recruta se  transformou num burro nem o banco se transformou numa arma mortífera.

Aliviado, o recruta concluiu  que o maldito banco não passava disso mesmo: um simples banco com a pintura verde escura a necessitar urgentemente de uma nova demão.

Perguntou-se então qual o motivo de todos os dias, quer fisesse sol ou chuva, calor ou frio, ter de ficar ali especado horas a fio, sem fazer nada de útil senão guardar a porra do velho banco.

Foi então que cometeu o sacrilégio de questionar em voz alta uma norma regulamentar do quartel da EPAM.

Agora apanha com a ira do sargento Feliciano.

Muito berrou o sargento Feliciano que os regulamentos se fizeram para serem  cumpridos.

Porquê?

Ora mas ca ganda porra! Porque sim, caraças!


Restabelecida a ordem e o perigoso intelectual mariconso posto em prisão militar, o mundo do sargento Feliciano seguiu  em paz e harmonia. 


















Caros Amigos,

Hoje adicionei um excerto sobre o Kiese 
ao site do livro ( www.correiodearc.wix.com/terra  ), 
ao blog (http://terraleve.blogspot.pt/
e ao facebook  (www.facebook.com/terraleve).  

O Kiese é um miúdo que vive numa povoação do interior de Cabinda. Também é polícia. Talvez seja mais miúdo que polícia… O certo é que não está minimamente preparado para lidar com a vaga de assassínios que se abateu na sua província. Para piorar um pouco as coisas para o lado do Kiese, descobre em si uma dimensão homossexual, uma grande atracção por um homem mais velho. 

Sem dúvida, sem dúvida que os tempos estão muito agitados para o pobre Kiese. E apesar deste mar revolto de emoções, tudo faz para se manter focado na investigação que se torna, a cada dia que passa, cada vez mais mediática.













Como referi no início, o Kiese não passa de um miúdo. Um miúdo calmo, educado, afável. Um puto assim faz o orgulho de qualquer mãe.  Foi com esta ideia que meti “mão à obra” no Google e lá encontrei o rosto do nosso Kiese.


A música tem de evocar sentimentos de saudade, ternura, amizade. Uma música calma e doce com o bom do Kiese. Elton John foi logo a minha primeira aposta. “Daniel” veio logo a seguir. Apesar da letra se inspirar no regresso de um veterano da guerra do Vietnam (ou seja, não ter nada a ver com os acontecimentos que o Kiese presencia), a sonoridade  tem tudo a ver com o jovem Kiese. Podem ver e ouvir a música do Kiese no final deste texto.

Podem consultar a página do Kiese  em:
http://correiodearc.wix.com/terra#!__kiese

Escrevo algo que não me canso de repetir: utilizem umas boas colunas ou uns auscultadores. Há imensa música no site e, francamente, o som dos PCs, tablets, etc, é francamente mau (horrível, mesmo).

Caso gostem deste site e do que estão a ler, divulguem pelos vossos amigos. É a única forma de um desconhecido autor chegar a um público mais vasto. Os endereços são: www.facebook.com/terraleve   ou http://terraleve.blogspot.pt/.
E pronto, amigos.  Em breve estarei aqui para vos falar sobre o Inspetor Miguel Lacerda.




















Capítulo 14
UM ANO PARA O FIM
ANSELMO MUNGUAMBE
CABINDA
Quinta feira, 17/Dez/2015, 16:00

O Jeep avançava, furioso, na direção do musseque do Pemba, para os lados do Tié. O limpa-vidros não tem mãos a medir para limpar toneladas de água e lama que ameaçam retirar a visibilidade por completo. O Kiese parece que enlouqueceu e pressiona o acelerador ao máximo. Quem os visse, silenciosos, pensaria que estavam mergulhados na investigação.

A reunião na Elad tinha acabado há pouco e a discussão que estalou entre o Anselmo e o Canende não tinha sido bonita de se ver. Noites sem dormir estavam a esgotar a paciência de todos e a corda que unia aqueles dois andava a partir-se com muita frequência. Um, não suportava a rigidez de procedimentos e o outro, não lidava bem com métodos anárquicos e erráticos. Afrontar um alto dirigente da Elad, ainda por cima à frente do Diretor Geral, foi a gota de pólvora que fez explodir a paciência do Canende. Verdade seja dita que a falta de resultados visíveis justificava o elevado stress em que se encontravam.

Noites a fio sem dormir e regadas com muito café também não estavam a ajudar. Tal como não ajudava as reuniões diárias que o Procurador teimava em ter, agora transformadas em contendas com hora marcada entre o Anselmo e o Canende.

Porém, o desconforto palpável naquele carro tinha outras raízes.

Quando o silêncio se tornou demasiado opressivo, o Kiese inclina-se e acaricia a mão de Anselmo.

- Apenas queria que soubesses que não me arrependo nada do que aconteceu ontem.

O primeiro impulso foi dizer ao Kiese que olhasse para a estrada e diminuísse a velocidade. No entanto continuou calado, não rejeitando a mão que o acariciava.

Ontem regressaram de Ninvungo e a família que interrogaram apenas lhes tinha dado dor. Mesmo para Anselmo, mais calejado nesta vida, a investigação estava a ser um pesadelo. Naquele casebre, olhando para uma família destroçada, lembrou-se do Leónidas. Pensou que a dor tudo iguala. Rico e pobre choram da mesma forma a perda dos seus ente queridos. E essa dor, essa monstruosa dor , limpa-lhes as memórias. Regressaram pois a Limbongo apenas cheios de lágrimas e dor.

- Porque não ficas cá hoje? - já não era a primeira vez que passava a noite na casa do Kiese. Contudo preferia ficar em Cabinda. Não pelo quarto do hotel ser melhor, mas para ficar longe de alguém que o atraía.

Descobriu em Kiese a antítese do Puto Zé. Este vivia focado em si e toda a vitalidade iluminava-o como uma estrela cintilante. O mundo é um imenso palco onde o público se levanta em sentida ovação ao ego desse homem que um dia tanto amou. Nunca conheceu o verdadeiro Zé. Apenas a personagem que representa de forma exuberante se dava a conhecer. Artista de dia, gueixa de noite.

Kiese... nos últimos tempos tem pensado demasiado nele. Como gosta da sua companhia serena. Da meiguice dos grandes olhos. Da permanente busca de consenso entre as contendas com o Canende. Nos últimos tempos deu por si a imaginar como seria bom poder abraçá-lo, sentir aquela pele negra brilhar de suor e prazer.


Apesar destes pensamentos não estava preparado para vê-lo entrar no quarto, perguntando se podia ficar. Já não esperava pelo sono. Essa benesse desapareceu com o maldito caso. A mente de Anselmo fervilha com os corpitos das miúdas. Também fervilha com outro corpo, negro, esguio e lindo, que agora lhe apareceu e, nervoso, se lhe oferece. A pele molhada, banhada pela luz da noite, assume a cor da prata. E ele, maldizendo a sua fraqueza, sucumbe ao desejo. A selva, negra e intensa, repleta de sons e gemidos entra, abundante, naquele quarto.  











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