UM
QUASE CONTO POUCO EDIFICANTE:
O
RAMADÃO NO QUARTEL DA EPAM
O
presente.
Que
não reste qualquer dúvida; o recruta estava mesmo a passar um mau
bocado às mãos do sargento Feliciano.
De
mãos nos quadris, o rosto a milímetros do pobre recruta, o sargento
vocifera que isto não é propriamente uma democracia nem ( neste
ponto o azedume do sargento subiu a níveis impossíveis) uma reunião
de intelectuais larilas.
Acontece que o recruta, certamente por evidente estupidez, teve a ousadia de
questionar um regulamento do quartel.
Este
insólito acontecimento chegou aos ouvidos do sargento Feliciano e há quem jure a pés juntos que o homem esteve a milímetros de ter uma apoplexia, tão vermelho se pôs.
A
piorar as coisas para os lados do infeliz recruta, sabe-se que o puto tem uma
licenciatura em humanistas, finalizada com muita dedicação e
sensibilidade há coisa de meio ano.
Aos olhos do sargento, a
licenciatura do recruta coloca-o na perigosa categoria de
intelectual. Tratando-se de humanistas, transforma o pobre rapaz em
intelectual mariconso.
Para o sargento Feliciano, pior só um licenciado em belas artes. De qualquer forma um tipo ser licenciado em humanistas já é bastante mau e ele está firmemente empenhado em acabar com qualquer paneleiragem no quartel da EPAM.
Agora
o sargento Feliciano prepara-se para acabar a longa acusação e
desata a gritar numa fúria justiceira para com o aterrorizado
recruta.
Segundo o irascível sargento, o puto é culpado por desobedecer ás normas.
É também culpado por incentivar ao livre pensamento, algo que repugna profundamente o Sargento Feliciano.
Por fim, este perigoso anarquista claramente homossexual, é
culpado por não honrar nem o quartel nem a farda que veste.
A
verdade é que esta história tem muitos culpados. Para mim, talvez
o mais culpado de todos tenha sido um pombo.
Mas
para compreendermos melhor a culpa do pombo, temos de recuar 5 anos.
5
anos atrás.
Quis
o destino que um pombo se aliviasse em pleno voo e a prendinha
acertasse com precisão cirúrgica nos calções do menino Manel Maria. A D.
Matilde a olhar desconsolada para os calções do miudo, maldisse amargamente a sua sorte, rogou uma sonora praga ao pombo e disse ao
filho para se sentar no único banco que está à frente da entrada do quartel
da EPAM.
Diz-se
que os soldados não se chocam com pouco e talvez seja verdade. Mas
os quatro praças que entravam no quartel ficaram no mínimo chocados
ao ouvir os impropérios proferidos pela D. Matilde, a boazona esposa
do comandante.
Digamos que há alguns atenuantes para o veemente
desabafo da mulher; ao fim e ao cabo, para além da cagadela do pombo, quando o menino Manel Maria se levantou do banco tinha os calções e as costas
da camisa pintados de verde escuro.
O mesmo
verde escuro que alguém ainda há menos de duas horas pintara o banco em frente do quartel da EPAM.
O
comandante do quartel também maldisse amargamente a sua sorte.
Digamos que o incidente com
os calções e a camisa do filho foi a situação mais delicada que
teve de lidar durante toda a sua estadia no quartel da EPAM. Enquanto
ouvia das boas da D. Matilde, praguejou silenciosamente. Logo isto
lhe tinha de acontecer na véspera de se transferir para a Terceira!
Como
é possível, trovejava a boazona da D. Matilde, que nenhum soldado
estivesse de guarda ao banco pintado de fresco?
Quantas mais pessoas
se sentarão nele e ficarão com as roupas irremediavelmente
estragadas com a tinta verde escura?
Foi
debaixo de muitas observações causticas da D. Matilde que o
Comandante rabiscou apressadamente o infame regulamento que rapidamente se tornou
conhecido como o Ramadão do quartel da EPAM.
Reza
assim:
Que
antes nascer do sol e até meia hora após o pôr do sol, um soldado
deve ficar de vigilância ao banco situado na entrada do quartel, no
passeio da Av. Linhas de Torres, impedindo que qualquer pessoa se
sente nele.
Na pressa, o bom do Comandante nem se lembrou que a tinta agora fresca, certamente amanhã estaria seca.
No
dia seguinte, enquanto o Comandante recebia as felicitações pelo
excelente trabalho desempenhado no quartel da EPAM, enquanto uns estafados praças atamancavam os seus pertences numa velha carrinha militar com
destino à Terceira, o sargento Feliciano lia pela primeira vez esta
ordem regulamentar com evidente prazer.
O
infeliz recruta que apanhou com a regra do Ramadão tinha acabado de
se licenciar em belas artes.
Diga-se que o acaso não teve nada a ver com a
escolha do Sargento Feliciano.
5
anos volvidos: o presente.
O recruta dormiu mal esta noite.
Não sabe muito bem o motivo porque o sargento teima em escolhê-lo
para o ramadão. Por isso, ontem ao jantar surripiou umas salsichas,
juntou-lhe um naco de queijo estranhamente duro e uma triste folha de
alface. Entalou a parca refeição num papo seco que já viu melhores
dias e rezou para que a sua intuição estivesse errada.
Ao longo da sua curta vida, o
recruta já se enganou demasiadas vezes para o seu bem. Infelizmente
desta vez a intuição do pobre moço revelou-se correta.
Uma hora antes do toque da
alvorada, o sargento Feliciano entra pela camarata e berra a regra do
Ramadão como faz diligentemente todas as manhãs ao longo dos últimos 5 anos.
Olha compenetrado para os recrutas e após um breve período de reflexão, o ríspido rosto do sargento enxuvalha-se num feio sorriso; tinha acabado de se decidir uma vez mais pelo mariconso que se
licenciou em humanistas.
Ontem, talvez por desespero, o recruta foi arrojado e, num momento de loucura,
contrariando o regulamento, sentou-se no maldito banco que está à frente do quartel.
Já
andava a matutar nisto há coisa de um mês e tinha chegado à
conclusão que a melhor altura para esta destemida ação era
durante almoço.
Talvez
pensando que o maldito banco tivesse poderes sobrenaturais, o recruta sentou-se muito levemente na pontinha do banco, enquanto agarrava nervosamente a
espingarda.
Nada
aconteceu.
Depois refastelou-se em cima do banco.
Também
nada.
Ganhando
confiança, pousou a espingarda no chão e pôs-se aos saltos em
cima do banco.
Nenhuma
explosão. Nem o recruta se transformou num burro nem o banco se transformou
numa arma mortífera.
Aliviado, o recruta concluiu que o maldito banco não passava disso mesmo: um simples banco
com a pintura verde escura a necessitar urgentemente de uma nova
demão.
Perguntou-se
então qual o motivo de todos os dias, quer fisesse sol ou chuva, calor
ou frio, ter de ficar ali especado horas a fio, sem fazer nada de útil senão
guardar a porra do velho banco.
Foi
então que cometeu o sacrilégio de questionar em voz alta uma norma
regulamentar do quartel da EPAM.
Agora apanha com a ira do sargento
Feliciano.
Muito berrou o sargento Feliciano que os regulamentos se fizeram para serem cumpridos.
Porquê?
Ora mas ca ganda porra! Porque sim, caraças!
Restabelecida
a ordem e o perigoso intelectual mariconso posto em prisão militar, o mundo do
sargento Feliciano seguiu em paz e harmonia.
Caros Amigos,
Hoje adicionei um excerto sobre o Kiese
ao site do livro ( www.correiodearc.wix.com/terra ),
ao blog (http://terraleve.blogspot.pt/ )
e ao facebook (www.facebook.com/terraleve).
ao site do livro ( www.correiodearc.wix.com/terra ),
ao blog (http://terraleve.blogspot.pt/ )
e ao facebook (www.facebook.com/terraleve).
O Kiese é um miúdo que vive numa povoação do interior de Cabinda.
Também é polícia. Talvez seja mais miúdo que polícia… O certo é que não está
minimamente preparado para lidar com a vaga de assassínios que se abateu na sua província. Para piorar um pouco as coisas para o lado do Kiese,
descobre em si uma dimensão homossexual, uma grande atracção por um homem mais
velho.
Sem dúvida, sem dúvida que os tempos estão muito agitados para o pobre Kiese. E apesar deste mar revolto de emoções, tudo faz para se manter focado na investigação que se torna, a cada dia que passa, cada vez mais mediática.
Sem dúvida, sem dúvida que os tempos estão muito agitados para o pobre Kiese. E apesar deste mar revolto de emoções, tudo faz para se manter focado na investigação que se torna, a cada dia que passa, cada vez mais mediática.
Como referi no início, o Kiese não passa de um miúdo. Um miúdo
calmo, educado, afável. Um puto assim faz o orgulho de qualquer mãe. Foi com esta ideia que meti “mão à obra” no
Google e lá encontrei o rosto do nosso Kiese.
A música tem de evocar sentimentos de saudade, ternura, amizade.
Uma música calma e doce com o bom do Kiese. Elton John foi logo a minha
primeira aposta. “Daniel” veio logo a seguir. Apesar da letra se inspirar no
regresso de um veterano da guerra do Vietnam (ou seja, não ter nada a ver com
os acontecimentos que o Kiese presencia), a sonoridade tem tudo a ver com o jovem Kiese. Podem ver e ouvir a música do Kiese no final deste texto.
Podem consultar a página do Kiese
em:
http://correiodearc.wix.com/terra#!__kiese
http://correiodearc.wix.com/terra#!__kiese
Escrevo algo que não me canso de repetir: utilizem umas boas colunas ou uns auscultadores.
Há imensa música no site e, francamente, o som dos PCs, tablets, etc, é
francamente mau (horrível, mesmo).
Caso
gostem deste site e do que estão a ler, divulguem pelos vossos amigos. É a
única forma de um desconhecido autor chegar a um público mais vasto. Os
endereços são: www.facebook.com/terraleve ou http://terraleve.blogspot.pt/.
E pronto, amigos. Em breve
estarei aqui para vos falar sobre o Inspetor Miguel Lacerda.
Capítulo 14
UM ANO PARA O FIM
ANSELMO MUNGUAMBE
CABINDA
Quinta feira, 17/Dez/2015, 16:00
O Jeep avançava, furioso, na direção
do musseque do Pemba, para os lados do Tié. O limpa-vidros não tem
mãos a medir para limpar toneladas de água e lama que ameaçam
retirar a visibilidade por completo. O Kiese parece que enlouqueceu e
pressiona o acelerador ao máximo. Quem os visse, silenciosos,
pensaria que estavam mergulhados na investigação.
A reunião na Elad tinha acabado há
pouco e a discussão que estalou entre o Anselmo e o Canende não
tinha sido bonita de se ver. Noites sem dormir estavam a esgotar a
paciência de todos e a corda que unia aqueles dois andava a
partir-se com muita frequência. Um, não suportava a rigidez de
procedimentos e o outro, não lidava bem com métodos anárquicos e
erráticos. Afrontar um alto dirigente da Elad, ainda por cima à
frente do Diretor Geral, foi a gota de pólvora que fez explodir a
paciência do Canende. Verdade seja dita que a falta de resultados
visíveis justificava o elevado stress em que se encontravam.
Noites a fio sem dormir e regadas com
muito café também não estavam a ajudar. Tal como não ajudava as
reuniões diárias que o Procurador teimava em ter, agora
transformadas em contendas com hora marcada entre o Anselmo e o
Canende.
Porém, o desconforto palpável naquele
carro tinha outras raízes.
Quando o silêncio se tornou demasiado
opressivo, o Kiese inclina-se e acaricia a mão de Anselmo.
- Apenas queria que soubesses
que não me arrependo nada do que aconteceu ontem.
O primeiro impulso foi dizer ao Kiese
que olhasse para a estrada e diminuísse a velocidade. No entanto
continuou calado, não rejeitando a mão que o acariciava.
Ontem regressaram de Ninvungo e a
família que interrogaram apenas lhes tinha dado dor. Mesmo para
Anselmo, mais calejado nesta vida, a investigação estava a ser um
pesadelo. Naquele casebre, olhando para uma família destroçada,
lembrou-se do Leónidas. Pensou que a dor tudo iguala. Rico e pobre
choram da mesma forma a perda dos seus ente queridos. E essa dor,
essa monstruosa dor , limpa-lhes as memórias. Regressaram pois a
Limbongo apenas cheios de lágrimas e dor.
- Porque não ficas cá hoje? -
já não era a primeira vez que passava a noite na casa do Kiese.
Contudo preferia ficar em Cabinda. Não pelo quarto do hotel ser
melhor, mas para ficar longe de alguém que o atraía.
Descobriu em Kiese a antítese do Puto
Zé. Este vivia focado em si e toda a vitalidade iluminava-o como uma
estrela cintilante. O mundo é um imenso palco onde o público se
levanta em sentida ovação ao ego desse homem que um dia tanto amou.
Nunca conheceu o verdadeiro Zé. Apenas a personagem que representa
de forma exuberante se dava a conhecer. Artista de dia, gueixa de
noite.
Kiese... nos últimos tempos tem
pensado demasiado nele. Como gosta da sua companhia serena. Da
meiguice dos grandes olhos. Da permanente busca de consenso entre as
contendas com o Canende. Nos últimos tempos deu por si a imaginar
como seria bom poder abraçá-lo, sentir aquela pele negra brilhar de
suor e prazer.
Apesar destes pensamentos não estava
preparado para vê-lo entrar no quarto, perguntando se podia ficar.
Já não esperava pelo sono. Essa benesse desapareceu com o maldito
caso. A mente de Anselmo fervilha com os corpitos das miúdas. Também
fervilha com outro corpo, negro, esguio e lindo, que agora lhe
apareceu e, nervoso, se lhe oferece. A pele molhada, banhada pela luz
da noite, assume a cor da prata. E ele, maldizendo a sua fraqueza,
sucumbe ao desejo. A selva, negra e intensa, repleta de sons e
gemidos entra, abundante, naquele quarto.
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