UM QUASE CONTO (DESTA VEZ, MUITO POUCO) EDIFICANTE:
O bom aluno
E o Lopes acompanhou o derrotado
Miguel até à porta do seu gabinete com palavras de ânimo, não se esquecendo de
dar umas quantas pancadinhas
encorajadoras nas curvadas costas do homem. Se tivesse um cafezinho até lhe
oferecia de bom grado.
Cai sempre bem um gesto atencioso
para com os derrotados desta vida.
-
Encara isto como
uma nova oportunidade, Miguel.
-
Só podes estar a
brincar comigo...
Claro que estou, parvo.
Tás lixado, meu. Quem quer o teu coiro balofo de quase cinquenta anos?
O
Lopes arma-se com aquele sorriso triste e compreensivo enquanto lhe passa o braço
pelos curvados ombros do colega.
-
Ó Miguel,
então? Já não te lembras das palavras do
nosso primeiro ministro? Lá fora existe todo um mundo de oportunidades que espera
por ti! E depois sempre podes emigrar, meu caro.
E pronto! Mais um para a rua.
Fecha a porta do gabinete num maravilhoso estado de exaltação, esfrega as mãos de contentamento, dá um enérgico soco para o ar e sente-se um campeão.
Fecha a porta do gabinete num maravilhoso estado de exaltação, esfrega as mãos de contentamento, dá um enérgico soco para o ar e sente-se um campeão.
O cabrão que disse que o
poder inebria mais que o sexo, está coberto de razão, caraças!
O dia tinha praticamente
começado com o Lopes a reunir-se com os trabalhadores. Até lhes cheirou o medo
quando comunicou a monstruosa tarefa que tinha pela frente.
Monstruosa foi uma palavra
excelente.
O Lopes está mesmo orgulhoso
da escolha. A malta já tinha apanhado com o monstruoso aumento de impostos que
o Gaspar anunciou há anos, e agora os desgraçados sabem bem o peso desta linda palavrinha.
Aliás, lembrar-se da cara seráfica do Gaspar a anunciar as monstruosas medidas,
foi um golpe de génio para o Lopes. Aquela
cara patibular e a voz monocórdica do Gaspar foi mesmo uma bênção para o Lopes. Apenas
necessitou dar uns quantos retoques de estilo. Como pôr aquele ar de contrariedade, talvez de sofrimento, enquanto pronuncia a palavra
monstruosa aos aterrorizados colegas.
Ontem fartou-se de treinar o discurso ao espelho. O problema era que se desmanchava a rir
quando chegava à parte do lamento muito...
Lamento muito, o tanas! - gargalhava o Lopes para o espelho - Antes ser eu a despedir do que estar
sentado no meio dos vencidos da vida a rezar para não ser escolhido.
À frente do maralhal, o triste Lopes muito lamentou a monstruosa tarefa que tem pela
frente, e o sofrido ar que arranjou foi uma maravilha de representação.
A monstruosa tarefa que o Lopes tem pela frente é despedir vinte e quatro colegas.
Um horror, meus amigos. Acreditem que antes preferia partir um braço.
A monstruosa tarefa que o Lopes tem pela frente é despedir vinte e quatro colegas.
Um horror, meus amigos. Acreditem que antes preferia partir um braço.
Disse todas estas baboseiras
sem que a triste carranca à Gaspar se descosesse um milímetro. Até conseguiu manter a patibular cara de
sofrimento onde não faltaram tons de comiseração e solidariedade na voz. Infelizmente, apesar de ter tentado com
muita força, não conseguiu sangrar uma lágrima que fosse dos tristes olhos.
Findo o fúnebre monólogo, as consternadas
caras dos colegas soaram como palmas e ovações para o Lopes.
Entre outras pérolas, esta
saiu-lhe mesmo bem: Estou convosco, amigos. De alma e coração. Mas
obrigam-me a esta ingrata tarefa.
Ponhamos
as coisas no sério: o miserável estado a que chegou a empresa não é culpa do
Lopes.
É
bem certo que andam por aí uns lunáticos a dizerem umas patacoadas sobre a sobrevivência
da empresa, mas essa esquerdalha vai borda fora não tarda nada. A realidade é
que isto só lá vai com um valente
emagrecimento. É como dis o patrão, o Sr. Silvestre: uma cura de austeridade.
E azar de quem for despedido; ao fim e ao cabo há danos colaterais em todas as guerras, não é verdade? Quanto ao Lopes, sempre soube estar do lado dos vencedores, ser o lobo que domina a carneirada. Há alguma dúvida entre matar ou ser morto? Será que ele, Lopes, tem pinta de Madre Teresa de Calcutá ou de outro parvo mártir?
E azar de quem for despedido; ao fim e ao cabo há danos colaterais em todas as guerras, não é verdade? Quanto ao Lopes, sempre soube estar do lado dos vencedores, ser o lobo que domina a carneirada. Há alguma dúvida entre matar ou ser morto? Será que ele, Lopes, tem pinta de Madre Teresa de Calcutá ou de outro parvo mártir?
Com
sorte o Lopes até receberá um incentivo pela limpeza que está prestes a fazer.
E
com estes pensamentos, o Lopes deu início ás temidas reuniões com vista aos
despedimentos.
Hoje, logo hoje, o magricela
do Lopes, esse deslavado homenzinho sempre encafuado em números e papeis,
agigantou-se com a tarefa dada pelo Dr. Silvestre. E nem foi necessário nenhuma
badalada para a abóbora se transformar num temido ditador ou ser admirado pela boazuda da Geni como se fosse um príncipe encantado.
Claro que o primeiro falhado a
ser chamado tinha de ser o Garrido.
O filho da puta nunca foi à bola com o Lopes. Há coisa de meio anos atrás, este esquerdalho até teve a desfaçatez de escrever um email nada abonatório sobre o Lopes. O cabrãozinho do Garrido teve o desplante de acusá-lo de desleixado, preguiçoso e mau colega.
Esta e outras tretas que o filho da puta teve o desplante de escrever, foram parar ao computador do Dr. Silvestre. Na altura o Dr. Silvestre pregou-lhe uma valente descompostura o que fez aumentar exponencialmente o grau de sabujice do Lopes.
Mas são os fins, e não os meios, que interessam. Não só as toneladas de sabujice acalmaram a fera como eis que agora o pequeno Lopes é um tipo temido por esta corja de derrotados. Veja-se os gregos, caraças! De que lhes vale conservarem a honra se lhes escasseia o pão? Na opinião do Lopes, essa escória só tem de se tornar no bom aluno da Senhora Merkel. É mais ou menos como ele e o Sr. Silvestre, certo?
O filho da puta nunca foi à bola com o Lopes. Há coisa de meio anos atrás, este esquerdalho até teve a desfaçatez de escrever um email nada abonatório sobre o Lopes. O cabrãozinho do Garrido teve o desplante de acusá-lo de desleixado, preguiçoso e mau colega.
Esta e outras tretas que o filho da puta teve o desplante de escrever, foram parar ao computador do Dr. Silvestre. Na altura o Dr. Silvestre pregou-lhe uma valente descompostura o que fez aumentar exponencialmente o grau de sabujice do Lopes.
Mas são os fins, e não os meios, que interessam. Não só as toneladas de sabujice acalmaram a fera como eis que agora o pequeno Lopes é um tipo temido por esta corja de derrotados. Veja-se os gregos, caraças! De que lhes vale conservarem a honra se lhes escasseia o pão? Na opinião do Lopes, essa escória só tem de se tornar no bom aluno da Senhora Merkel. É mais ou menos como ele e o Sr. Silvestre, certo?
Mas voltemos ao filho da puta
do Garrido. Vê-lo agora reduzido à
condição de rastejante, é um dos pontos altos do dia do Lopes.
A vingança serve-se fria,
meu cabrão. Cá se fazem, cá se pagam.
Vejamos a reunião com a Geni.
A boazuda estava nervosíssima e os olhos vermelhos ainda estavam a lacrimejar. Mas que gaja mais boa, esta Geni! A puta sabe bem o que vale e no meio da conversa soube inclinar-se toda para o Lopes mostrando-lhe as imensas delícias carnais. E entre sorrisinhos ficou a pairar promessas de muitas loucuras, épicas cambalhotas numa cama decente .
A boazuda estava nervosíssima e os olhos vermelhos ainda estavam a lacrimejar. Mas que gaja mais boa, esta Geni! A puta sabe bem o que vale e no meio da conversa soube inclinar-se toda para o Lopes mostrando-lhe as imensas delícias carnais. E entre sorrisinhos ficou a pairar promessas de muitas loucuras, épicas cambalhotas numa cama decente .
As fantásticas delícias
vislumbradas sem vergonha, o promissor sorriso cheio de promessas magníficas e
um discreto roçar de pernas nada casual, mudaram definitivamente o sentido da conversa. O que se adivinhava
penoso transformou-se numa alegre valsa de acasalamento.
A reunião coma Geni terminou com
um tranquilizador sorriso e uma imensa
erecção. O Lopes telefonou à mulher dizendo que hoje não podia ir jantar.
Jantar com o velho chasso, claro está. Sim, que o jantar com a boazona da Geni ficou
logo marcado entre uma troca de olhares muito promissora, onde nem faltou o tal
adorável roçar de pernas.
Quanto à continuidade da Geni
na empresa… bem, isso depende das pernas dela.
Ou se abrem, atitude inteligente da Geni, ou não.
E entra agora o Pereira a
tremer que nem varas verdes.
Desconsolado, o parvo pergunta-se
porquê ele.
-
Sempre fui um
trabalhador dedicado à empresa, Lopes.
Pois, choraminga para aí,
cabrão. O teu problema foi mesmo esse. Seres dedicado à empresa e um sacana
para mim. Agora, meu caro...
-
Meu caro amigo
Pereira, acredite que tudo fiz junto do Dr. Silvestre para retirar o seu nome
da lista... Logo o seu, meu amigo! Logo o seu…
Lista VIP, eh eh eh . E
contigo na alheta, meu caro, chego aos vinte e três. Falta apenas a gorda Leopoldina para atingir a meta que me propus.
Digamos que a balofa Leopoldina
é uma vítima das fantásticas pernas da Geni. Um dano colateral, a bem dizer.
Enquanto uma é boazuda todos os dias, a
Leopoldina é um trambolho. Até pode ser boa trabalhadora, neste ponto o Lopes não discorda.
Mas que é um valente chaço…
Também a Leopoldina se
escangalhou no gabinete do Lopes ao saber que ia ser despedida. A chorar que
nem uma carpideira falou ao coração do Lopes. Disse-lhe que tinha quatro filhas em idade escolar.
O Lopes não conseguiu evitar
uma expressão de espanto.
Mas como é que este
trambolho conseguiu parir logo quatro filhas, carago? E como é que algum homem
tem a coragem de enfiar a pila numa
montanha de gelatina como esta balofa?
Enquanto o Lopes se perde
nestes pensamentos, foi falando em piloto automático com a chorosa Leopoldina,
dizendo que no final tudo acabará por correr bem. O que é preciso é ter confiança e não
desanimar.
-
Querida
Leopoldina, ao fim e ao cabo, como diz o nosso primeiro ministro, lá fora há um
mundo de oportunidades que espera por si.
Este é um sacrifício por
uma causa nobre, minha querida. Vais tu para a rua enquanto ao Geni fica para
me fazer uns trabalhinhos caseiros. Troca justa, não é verdade, óh trambolho?
Enquanto a Leopoldina,
chorosa com o seu destino, medita tristemente na nobreza do seu ato para tirar empresa do buraco, nas medidas excepcionais em tempos de austeridade, o Lopes pensa numa enorme
cama de água onde épicas batalhas acontecerão com a boazona da Geni.
Ai as pernas da Geni, meu
Deus!
E o dia chega ao fim com o
Lopes a entrar no gabinete do Dr. Silvestre.
-
Mas... despediste
24 pessoas, Lopes?
O pequeno Lopes quase rebenta
de orgulho ao detetar o agradável espanto na voz do patrão.
-
Penso que assim
as contas ficarão mais folgadas, senhor.
-
Sem dúvida,
Lopes. Sem dúvida. Mas que agradável surpresa, meu caro! Superaste em quatro! Mas que agradável surpresa, Lopes!
O nosso Lopes rejubilou de orgulho.
O nosso Lopes rejubilou de orgulho.
-
Sabe que pode
contar comigo para o que quiser, Senhor. Sempre!
-
Sem dúvida,
Lopes. Sem dúvida.
E a cabeça do Lopes enche-se
de ideias ao ver do Dr. Silvestre rabiscar qualquer coisa.
Talvez um prémio chorudo por
tão bom desempenho?
O Lopes já se está a imaginar numa imensa cama de hotel com a Geni. Ao olhar para o papel que o Sr. Silvestre está a assinar, pensa que o prémio até dê para umas férias com a boazuda num resort de luxo. Sexo, sexo, sexo, sexo! Vai ser o paraíso, caraças!
-
Tome, Lopes.
Saiba que estamos muito agradecidos.
Estava distraído o Lopes com as fantásticas pernas da Geni e não viu a folha de papel que o Dr. Silvestre lhe estendia.
Estava distraído o Lopes com as fantásticas pernas da Geni e não viu a folha de papel que o Dr. Silvestre lhe estendia.
O franco sorriso foi
desaparecendo da cara do Lopes ao perceber que segura na mão a carta do seu
despedimento.
O Lopes está horrorizado.
O Lopes está horrorizado.
-
Mas... Dr.
Silvestre...
-
Não agradeça, Lopes. Acrescentei mais uns euritos à proposta inicial, mas você bem os mereceu, homem!
-
Mas...
-
Então, homem? Que
cara é essa? Encare isto como uma nova oportunidade, óh Lopes.
-
Só pode estar a
brincar comigo, Dr. Silvestre... Depois de tudo o que fiz pela empresa...
-
Óh Lopes,
então? Já não se lembra das palavras do
nosso primeiro ministro? Lá fora existe todo um mundo de oportunidades que espera por si!
E acompanha o atónito Lopes até
à porta do seu gabinete enquanto lhe dá umas palmadinhas nas costas.
-
E depois sempre
pode emigrar, meu caro.
Caros Amigos,
Hoje adicionei um excerto sobre o Inspetor Miguel Lacerda
ao site do livro ( www.correiodearc.wix.com/terra ),
ao blog (http://terraleve.blogspot.pt/ )
e ao facebook (www.facebook.com/terraleve).
ao site do livro ( www.correiodearc.wix.com/terra ),
ao blog (http://terraleve.blogspot.pt/ )
e ao facebook (www.facebook.com/terraleve).
Não é por acaso que termino a apresentação dos personagens com o
Miguel Lacerda. Apesar de aparecer marginalmente na história (aqui está um
movimento oposto ao do John Travis e ao da Teresa Belo), este Inspetor é dos meus
personagens preferidos. O Miguel, por duas ou três vezes rotulado de
incompetente pelo Pedro Lage, está farto do que faz e conta os dias que lhe
faltam para a reforma, enquanto tenta liderar uma equipa algo disfuncional. De
humor que varia entre o mau e o péssimo, encontramos o Inspetor
Lacerda assoberbado na investigação do
assassinato de um banqueiro quando um antigo colega lhe telefona a pedir um
favor. Cada vez mais incrédulo, ouve o que o colega lhe diz e no final solta
uma praga. Ao fim e ao cabo nunca recusou nada ao seu mentor e não é agora que
se vai a pôr com tretas. Por muito que
lhe custe, e custa-lhe como o diabo, acaba por responder afirmativamente ao
Frederico.
O Miguel Lacerda tem muito pouca paciência para enigmas, mistérios e outras particularidades que o obriguem a pensar. Sente-se confortável com o seu mundo a branco e preto, os bons e os maus, a verdade e a mentira. A úlcera que carrega todos os dias no seu dilatado estômago uiva quando tais dicotomias se multiplicam em nuances que dificilmente compreende. A imagem que escolhi traduz esta simplicidade tantas vezes confundida com falta de inteligência. Apesar do seu mau humor, o Inspetor é uma alma sensível onde a rudeza do rosto encobre bem um caráter afável, reto e disponível. A fotografia que escolhi tenta retratar o que acabo de escrever. O rosto é duro e determinado mas, desculpem-me este à vontade, não tem a centelha de inteligência que se vê no do Inspetor Frederico ou do Jota.
Para mim, a música do Miguel Lacerda deve espelhar um
desapontamento e um cansaço de alguém que perdeu a capacidade de se maravilhar.
Ao mesmo tempo deve ser forte de determinada como este sólido Inspetor.
Springsteen é dos cantautores que melhor trabalha este sentimento de
desencantamento. (além do mais, os subordinados tratam-no por chefe) . Breakaway é, a meu ver, a música perfeita para o Lacerda. Podem ver e ouvi-la no final deste texto.
Podem consultar a página do Inspetor Miguel Lacerda em:
http://correiodearc.wix.com/terra#!__miguel
http://correiodearc.wix.com/terra#!__miguel
Escrevo algo que não me canso de repetir: utilizem umas boas colunas ou uns auscultadores.
Há imensa música no site e, francamente, o som dos PCs, tablets, etc, é mau (horrível, mesmo).
Caso
gostem deste site e do que estão a ler, divulguem pelos vossos amigos. É a
única forma de um desconhecido autor chegar a um público mais vasto. Os
endereços são: www.facebook.com/terraleve ou http://terraleve.blogspot.pt/.
E pronto, amigos.
Na próxima quinta feira estarei aqui para vos falar sobre as músicas que inspiraram a minha escrita.
Na próxima quinta feira estarei aqui para vos falar sobre as músicas que inspiraram a minha escrita.
Capítulo 31
UM ANO PARA O FIM
MIGUEL LACERDA
LISBOA
Terça feira, 22/Dez/2015, 15:30
A sala era seguramente a maior divisão onde alguma vez esteve. Por
um momento pensou na ex mulher, a Rosário, e como ela gostaria de estar nesta
magnifica casa. Quando passeavam para os lados da Boca do Inferno, a sua mulher
detinha-se invariavelmente à frente deste casarão cor de rosa com vista direta
para o mar. Sonhava um dia ser rica sem compreender que casarões iguais a este
ou vem de fortunas muito velhas ou de trafulhices muito novas. Os novos ricos
contentam-se em ficar mais à frente, para os lados da Guia. Com sorte, talvez o
dentista lhe compre um andar numa das torres que existem perto do Pestana.
A mulher que está à sua frente sentada num cadeirão que custou
mais do que ganha num ano inteiro, acabou de sentir o peso do mundo nas suas
costas. Da estupefação por saber da morte do marido, passou à dor pela perda de
um ente querido. Ainda tentou manter a pose durante alguns minutos mas o choque
foi demasiado violento. Por isso tirou um lencinho e enxugou os cantos dos
olhos sentindo-se envergonhada por esta fraqueza. Ditames da classe a que
pertence, pensa com algum azedume. Não fica bem a uma Sotto Mayor expressar a
dor como um vulgar ser humano e muito menos perante um oficial de polícia. Por
isso tenta reter as lágrimas e a angústia o melhor que consegue.
Aos poucos a dor foi cavando uma brecha nesse dique de castas e
etiquetas e uma grossa lágrima rolou num rosto que perdeu há muito a pouca
graça que teve. Outras se seguiram e entre pedidos de desculpas e lenços
protetores, o edifício alicerçado por regras de etiqueta asfixiantes começou
lentamente a ruir.
Não interessa se rico ou pobre, dar noticias como esta é a pior
tarefa que o Miguel tem de desempenhar. Sabe que no final do dia irá
arrastar-se até ao bar mais próximo e lavar a sua alma em alguns copos de
whiskies.
Pelo canto do olho vê a Cátia, a caçula da equipa, impaciente por
falar com ele. Com um gesto de contrariedade refreia o ímpeto juvenil da
agente. Há que respeitar a dor de uma perda, até porque estes momentos podem
ser muito reveladores. Mais tarde irá falar com ela.
Ж
- Esta é a listagem dos telefonemas que o Tomás efetuou – a Cátia
pode ser a mais nova do grupo mas é de longe a mais desembaraçada nas questões
informáticas e noutros segredos do género.
Pega nas folhas de papel e fica algo desmotivado pela quantidade
de números que o agridem.
- Veja o último telefonema que recebeu.
De repente sente o corpo gelar. Não pelo último telefonema que
recebeu, mas pelo último telefonema que realizou. A acreditar no que o médico
legista lhe disse, o Tomás fez este telefonema cerca de meia hora antes de ser
assassinado. Fica por momentos a olhar fixamente para o número. Depois solta
uma sonora praga.
Mais uma vez o Frederico teve a capacidade de o surpreender.
Frenético, marca o número do amigo.
(...)
Ficou agastado pela interrupção. Todos sabem que não gosta de ser
interrompido quando está num processo de interrogatório, e diabos o mordessem
se aquela reunião não é já um inquérito. Por isso nem tentou dissimular a
contrariedade que sentiu quando o Rui entrou pela sala dentro com um molho de
folhas na mão. Eram fotografias de um homem e de uma mulher em diversas
posições explícitas num quarto de hotel.
Ao olhar para aquela mulher que recebia em êxtase a masculinidade
do Tomás, recordou uma outra, tão bela como esta, que o levou tantas e tantas
vezes ao êxtase. E recordando todas essas vezes, acha-as tão poucas. Tão
dolorosamente poucas. A família. O apelo da família. Foi pela Rosário que
decidiu terminar a relação com a Helena. E desde essa altura não passa uma
única noite que não pense nela nem como a sua vida poderia ter-se enchido de
sol, cor, risos e muito amor. Olha para fora da janela e para as nuvens escuras
que vestem a cidade de um lacónico manto cinzento. Tão cinzento como está a
puta da sua vida. A Lena faz-lhe tanta falta, santo Deus! Sem ela tornou-se
amargo e impaciente.
Lembra-se do tempo em que fazia amor com a Rosário. Era a Lena, a
sua Lena, que via a abraçá-lo, a beijá-lo e a gemer de prazer. É a velha
questão do ovo e da galinha. Não sabe se a Lena entrou na sua vida porque o seu
casamento estava uma desgraça ou a relação esfrangalhou-se porque a Lena entrou
um dia na sua vida… No seu caso, pensa, o ovo e a galinha apareceram ao mesmo
tempo…
Quase com relutância desvia o olhar dessa outra mulher que se
parece tanto com a sua eterna paixão e mostra as fotografias aos presentes.
Sem comentários:
Enviar um comentário